Os primeiros verões

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016


Dona Fernanda olha atentamente para o marido, Guilherme, que está sentado a seu lado em uma cadeira de vime, na varanda da casa onde vivem há mais de 40 anos. Observa seus cabelos acinzentados, mas ainda fartos, a testa altiva, as rugas ao redor dos seus olhos castanhos claros e nos cantos da boca que tenta conter um sorriso, como alguém que sabe que está sendo observado.
Por sua vez, Seu Guilherme aprecia o cheiro que emana de sua esposa, ainda tão doce e tão feminino, como na primeira vez em que o sentiu, mas permanece com os olhos na direção da praia, onde os netos estão brincando ali perto, permitindo que ela continue avaliando-o em silêncio. Sua doce Fernanda, que ainda mantém aquela aura delicada das jovens, e a beleza de quem só se aperfeiçoa com o tempo, com seus cabelos ruivos naturais com alguns fios mais claros agora, as delicadas sardas no nariz pequeno e levemente arrebitado e o brilho nos olhos verdes, que lhe lembram sempre ondas marítimas.
Hoje eles comemoram 40 anos de casados, e os filhos vieram com os netos e os cônjuges para celebrar a data com eles. Nesse momento, suas duas filhas estão na cozinha com a cunhada, preparando os pratos favoritos dos dois e sobremesas que são proibidas há tempos, devido aos problemas que vem com a idade, mas que em dias especiais como hoje, são liberados com moderação, e o filho está com os cunhados preparando a churrasqueira, para que os jovens e as crianças possam apreciar algo que agrade mais o seu paladar. Os netos, 3 meninas e 2 meninos, com idade entre 7 e 3 anos, são muito unidos e brincam juntos, criando castelos para as histórias de princesas que as garotas contam com entusiasmo, transformando cada um deles em um personagem primordial para cada aventura.
Observando tudo isso, é impossível que ambos não se recordem dos primeiros verões, de quando se conheceram, e essas doces lembranças invadem os pensamentos de cada um, como se houvessem combinado previamente, mas na verdade sem fazer ideia de que seus pensamentos seguem a mesma direção, prática que se tornou comum depois de tanto tempo.

Fernanda

- Atchimmmmm!!!!!! – o alívio após o espirro é rápido, pois em seguida sou acometida por outros, até que fica difícil respirar e eu solto um arquejo alto.
Minha mãe me olha com preocupação e faz um sinal com a cabeça para que eu saia da loja, e respire um pouco de ar fresco. Eu obedeço imediatamente, pois sei que só vai piorar. É assim, todo verão eu quase morro por causa da alergia que me acompanha desde criança. Por ironia do destino, meu maior problema é com flores, e adivinhem? A Papelaria Meu Pedaço de Papel que pertence a minha família há séculos, fica do lado de uma floricultura. E é claro, que todo mundo que compra flores lá, passa aqui para preparar um embrulho. Isso foi um acordo de cavalheiros entre meu avô e o seu Mathias, dono da Floricultura Cheiro de Flor, há tipo, uns 500 anos atrás, e nossas famílias mantiveram o acordo depois que eles se aposentaram e legaram os negócios aos filhos. E, eu não tive escolha, se não trabalhar com minha mãe na Papelaria, já que ainda falta um ano para eu me formar no colegial e ir pra faculdade.
Atravesso a rua em direção à Farmácia do seu Oswaldo, em busca de algum fármaco que me traga alívio. Os funcionários já estão acostumados comigo e com meus surtos alérgicos. Acho que sou sua maior fonte de renda hahaha. Tenho a péssima tendência a pensamentos sarcásticos quando estou doente, ignorem.
Ao entrar na Farmácia, dou um leve cumprimento de cabeça aos balconistas e pergunto pelo seu Oswaldo. Eles me informam que seu Oswaldo está na outra filial, que acabou de abrir no Centro da cidade, mas que tem um farmacêutico novo que pode me atender. Eu tento esconder meu desapontamento, pois seu Oswaldo já conhece meu histórico, sabe do que eu preciso, e não tenho disposição para contar toda a minha vida alérgica novamente, é por esse motivo que venho aqui e não ao Pronto Socorro, onde cada dia tem um médico diferente, e apenas balanço a cabeça concordando, enquanto sinto mais espirros chegando. 
Após uma série de espirros curtos, minha visão clareia um pouco entre as lágrimas que surgiram dos meus olhos inchados e consigo enxergar um jovem moreno à minha frente, usando um jaleco branco. E juro, nunca vi um farmacêutico tão gato. Minha boca se mantém aberta e não é porque estou com falta de ar. Ou melhor é sim, mas agora minha respiração está difícil por motivos bem diferentes da minha alergia, se você me entende.
Quando ele ergue uma sobrancelha, percebo que estou bancando a boba e engulo em seco, antes de começar a contar minha linda história alérgica para ele. Ai, sarcasmo sai de mim por favor!!!
Depois de uma inalação e com meus remédios em mãos, sigo para a Papelaria respirando aliviada, enxergando normalmente e com um sorriso nos lábios que se mantêm durante todo o dia, como se eu tivesse colocado um cabide na boca.

Guilherme 

Durante 3 verões eu observei a bela ruiva da Papelaria entrar aflita na Farmácia, por diversas vezes passando mal com crise alérgica. E todas as vezes eu larguei o que quer que estivesse fazendo para atende-la. Desde a primeira vez que a vi, ela se tornou minha prioridade, mesmo que não saiba disso até agora. 
Na primeira vez em que a vi, eu estava muito ansioso, era meu primeiro dia na Farmácia e eu um recém-formado, sem experiência, mas o seu Oswaldo me deu uma oportunidade, em nome da amizade dele com o meu pai. Eu estava olhando o estoque para conhecer os medicamentos disponíveis quando fui chamado por uma balconista que me olhava de um jeito que me deixava sem graça. Lavei as mãos e segui para a parte da frente da Farmácia para atender a cliente, quando ouço diversos espirros seguidos e vejo à minha frente uma jovem de cabelos avermelhados com olhos, nariz e lábios inchados e quase tão vermelhos quanto seus cabelos, mas por incrível que pareça o que eu realmente notei em meio a tudo isso, foram suas sardas em seu nariz delicado, que se destacaram por conta da vermelhidão da pele. 
Ela me encarou de boca aberta por um tempo, sem responder à minha pergunta clássica: “ em que posso ajuda-la?”, e comecei a ficar com medo dela ter uma parada respiratória ali no meio da Farmácia, mas vejo-a se recompor e devagar, com a voz rouca, me conta que é alérgica à flores desde criança e que não consegue escapar delas por causa da Floricultura ao lado da Papelaria, nem do seu namorado que insiste em lhe dar flores de presente nas datas especiais. Quando ela menciona um namorado, eu tento manter minha expressão neutra, mas sinto um certo desapontamento me atingir devagar. Depois de leva-la para a sala de inalação, separo as medicações que ela precisa e a vejo ir embora com um sorriso misterioso nos lábios, que já não estão mais inchados.
Depois disso, toda vez que passava mal, ela vinha até aqui, e confesso que a frequência era um pouco assustadora, mas conforme fomos nos conhecendo melhor, soube de sua resistência em ir ao Pronto Socorro, quando ela me explicou que já estava acostumada a vir à Farmácia que também era mais próxima. 
Ao longo do tempo fui conhecendo a jovem ruiva que sonhava em se tornar arquiteta, viajar ao redor do mundo olhando todos os monumentos e construções históricas, ter um Labrador e uma moto cor de rosa. Infelizmente ela não passou no vestibular e depois que sua mãe sofreu um AVC, ela teve que assumir a Papelaria da família, viajando somente nos feriados, para lugares próximos, e nunca poderia ter um cachorro ou outro animal de pelos, devido à sua alergia. 
Mas, mesmo abrindo mão dos seus sonhos, percebia-se que ela era feliz, cuidando da mãe e dos negócios com maestria. Ela parecia conformada com sua vida, mesmo seu horizonte tendo sido limitado. A melhor notícia, era que já havia um tempo que estava solteira. Bom, eu não disse que era uma boa notícia para ela.
Desde que soube disso, tenho enviado para ela toda semana, um buquê de flores alteradas geneticamente, de forma que não liberam pólen, evitando que ela tenha uma crise alérgica, mas sem revelar que sou eu o autor do presente. Eu sempre agendo a entrega durante meu horário de almoço, de maneira que consigo observar do Café ao lado da Farmácia, quando ela recebe as flores.
Na primeira vez, quando saiu à porta da Papelaria para atender ao entregador, ela fez uma expressão de horror tão intensa que fiquei com medo de ter pisado na bola, mas depois de uma breve conversa com o entregador, ela pegou o buquê segurando-o bem longe de si e entrou na Papelaria. Como não vi o buquê no lixo, tomei isso como um incentivo e continuei enviando buquês toda semana, e vi com prazer, ela começar a receber com alegria. 
Hoje enviei o último buquê, com um cartão pedindo que me encontre no Café, após receber as flores, e estou aguardando ansiosamente sua decisão. O nervosismo é tão grande que não tenho coragem de ficar na janela olhando dessa vez, por isso escolhi uma mesa mais escondida, no fundo. No cartão disse que ela me identificaria pela flor na mesa, igual às flores do buquê que vai receber. Meu coração bate acelerado, minha garganta fica seca e meu pé esquerdo não consegue parar de balançar devido ao nervosismo. Ouço o sino da porta soar com a entrada de alguém. Crio coragem e lentamente levanto meus olhos na direção da porta, e solto um suspiro de alívio ao ver Fernanda, minha linda ruiva parada ali me observando com o mesmo sorriso misterioso do dia em que nos conhecemos.
Devagar, ela se aproxima da mesa, ainda sorrindo como se soubesse um segredo que mais ninguém conhece e sei com uma certeza que me impressiona, que esse é apenas o primeiro dia do resto de nossas vidas.

6 comentários:

  1. Belo conto Regiane, parabéns!!Você escreve muito bem. Amei.
    Bjos!
    www.batomnacapa.blogspot.com

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  2. Da série: o blog da Gih Briones Meyer me emociona <3 :D Só posso vir aqui acompanhada por uma caixa de lenços, é o jeito rsrs ;)

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  3. Regiane, você escreve muito bem e faz tempo que quero dar uma dica. Procure uma editora chamada Charme. Eles são especializados em publicar livros feitos por mulheres ;) Você poderia publicar as suas histórias para agradar o universo literário <3
    Beijos :*

    www.blogdahida.com

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    Respostas
    1. Obrigada pela dica flor, estou reunindo os textos para poder enviar para as editoras, quando tiver respostas, pode deixar que lembrarei de contar pra ti ;)
      Beijo, beijo.

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